No início era o Paraíso. Não havia pecado e tMARCO-CIVIL-internetodas as redes eram neutras. O pecado original tirou o Homem do Paraíso e a necessidade de priorização de tráfego acabou com a neutralidade da rede (internet)!

Para entender o que é neutralidade da rede, é necessário compreender um pouco de como funciona uma rede “connectionless” como a internet.

O modelo de rede da internet, baseado no protocolo de comunicação TCP/IP, foi criado lá nos tempos da guerra fria, quando o departamento de defesa norte-americano possuía centros de comando que não poderiam depender da comunicação baseada em conexão direta entre eles, uma vez que, se uma linha fosse danificada, toda a comunicação cessaria. Em vez disso, o Internetwork Protocol, depois chamado simplesmente de internet, ligava os pontos não por uma conexão direta, mas por uma rede de conexões que utilizava vários caminhos (rotas). Para tanto os dados eram organizados em pequenos pacotes contendo uma série de informações como: de onde vinham, para onde iam, qual o seu número de sequência e qual a sua utilidade (serviço). O pacote de dados, assim “embalado”, seguia livremente o seu caminho pelas várias rotas da rede. Chegando ao destino, esses pacotes eram reagrupados conforme seu número de sequência, “desembalados” e a informação original reconstituída.

Tudo muito bonito, não? A tecnologia é linda! Bem… fora do Paraíso, aqui no mundo real, as coisas não são tão simples.  Dentre as várias rotas, uma pode ser mais rápida que outra e isso faz com que pacotes se atrasem ou mesmo sejam perdidos, obrigando o destinatário a “reclamar” e solicitar que determinado pacote seja enviado novamente, provocando atraso na entrega.

E o mundo real é assim mesmo, dentre as várias rotas uma pode ter, em determinado momento, mais trafego que a outra gerando um congestionamento e fazendo um pacote se atrasar ou até mesmo ser descartado para aliviar o tráfego.

Assim nasceu a internet. Inicialmente com serviços mais básicos como o correio eletrônico, a transferência de arquivos e a navegação. Um atraso de segundos ou frações para chegar um e-mail, ou aquela “engasgada” ao navegar, era totalmente suportável, não é?

Com o tempo, novos serviços foram surgindo, desde transações on-line até aplicativos para comunicação de voz. As transações eram pequenas e simples, mas envolvendo vendas (dinheiro) não podiam gerar atrasos, também assim, a comunicação de voz deveria ser “instantânea” e contínua para viabilizar uma conversa.

Aí, assim como houve a maçã no Paraíso, no mundo das redes “conectionless” surgiu a priorização de tráfego. É, agora há pacotinhos de dados que são mais iguais que outros pacotinhos de dados! Ou seja, os roteadores, que determinam as rotas dos pacotes, agora olham para um pacote e decidem: “Transação on-line, passe na frente! Pacote de voz, por aqui, rápido!”. Não há só priorização, mas alocação de banda, isto é, metade da minha rede pode, por exemplo, ser utilizada para pacotes de voz, um quarto para transações on-line e todos os outros serviços para a banda que sobrar. Assim, aquelas redes criadas puras e neutras perderam sua neutralidade para todo o sempre.

Novamente, que beleza! A tecnologia resolvendo todos os nossos problemas! Mas como em tudo, o mal não está nas coisas, mas nas pessoas. Além de servir para endereçar essas questões técnicas, os provedores de acesso raciocinaram: “agora posso ter parceiros que me pagam e faço com que os usuários deles tenham acesso aos serviços de forma mais rápida, fácil e disponível”. Mas claro que, como nada se cria, tudo se transforma, todo o tráfego que não for destinado aos parceiros será provavelmente mais lento, difícil e indisponível, relativamente.

Qual a consequência disso? Uma possível, e quase certa consequência, é que quem está estabelecido e forte no mercado será aquele parceiro ideal da operadora, que está disposto a pagar para ter seu cliente satisfeito e assegurar a sua liderança de mercado. O outro lado da moeda é que se está utilizando a rede como uma barreira de acesso para novos competidores no mercado. As condições de competitividade foram alteradas e tudo fica mais difícil para o competidor entrante naquele mercado. Uma questão que nasce técnica vira uma questão concorrencial.

Como estamos em um mundo cada vez mais globalizado e instantâneo, esse mesmo efeito se verifica no Brasil e no resto do mundo. A própria FCC (agência regulatória de comunicações nos EUA) trabalha em uma RFC (Request for Comment) que busca regular essa situação. Lá já existe uma mentalidade e uma comunidade ativa; mais de quatro mil comentários já foram obtidos para subsídio de uma regulamentação.

No caso brasileiro, a questão legal da neutralidade foi tratada no marco civil da internet (Lei 12.965/14) na “Seção I”, “Da Neutralidade da Rede” que se resume a um artigo com três parágrafos:

Art. 9o O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever detratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:

I – requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II – priorização de serviços de emergência.

§2º  Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1o, o responsável mencionado no caput deve:

I – abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil;

II – agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;

III – informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e

IV – oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

 §3º Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo. (grifo nosso)

 

Tanto no caput, quanto no §3º, está expressa a questão da isonomia, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação, sendo vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados. Importante ainda é o inciso IV, §2º, que garante que o provedor de internet deve oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

Parabéns, legislador brasileiro. Acertou na mosca! Mas, e sempre tem um “mas”, o §1º abre aquela famosa brecha para passar o “boi”, ou mesmo passar a “boiada”, quando determina que a discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada por decreto presidencial.

Resultado: mais de 18 meses após publicada a lei, ainda não temos uma regulamentação dessas exceções. Existe uma consulta pública, que não chegou a receber cem comentários, a respeito da questão da neutralidade. O que se vê na prática são operadoras oferecendo serviço gratuito para acessar esse ou aquele serviço, essa ou aquela rede social “de graça”, em flagrante afrontamento ao dispositivo legal.

Sabemos que não existe nada “de graça”, alguém está pagando por isso e, no fundo, aquela sensação do cliente de estar ganhando na verdade pode representar que ele está pagando um preço muito mais caro, uma vez que estamos em uma situação anticoncorrencial danosa para ele e para o mercado como um todo.

O mundo da tecnologia possui diversos casos de produtos sendo oferecidos “gratuitamente” apenas com o afã de garantia monopolista em perspectiva. Caso emblemático é o da Microsoft em relação ao Internet Explorer (IE) que passou a ser oferecido gratuitamente como “componente” do sistema operativo Windows. Depois de anos de batalha judicial nas Cortes norte-americanas (entre 1998 e 2000), onde o próprio Bill Gates depôs por mais de 30 horas, a Microsoft foi condenada por prática anticoncorrencial. Apesar das sanções e multas, os danos à promissora Netscape estavam irremediavelmente feitos!

Assim, está claro que tudo oferecido “de graça” tem um preço. A benesse de hoje torna-se uma perda de liberdade de escolha de amanhã a qual, invariavelmente, terá um preço muito caro, não só para o cidadão, mas para a sociedade como um todo.

O que está sendo visto hoje em relação ao acesso internet, especialmente a partir de dispositivos móveis, são operadoras ofertando acesso a todo tipo de aplicativo e redes sociais de graça ou “sem limite” em evidente desacordo com texto legal. Urgente se faz que a regulamentação venha, e que venha no sentido de confirmar o texto legal e não de torná-lo mais uma fonte de exceções e deturpações do espírito da lei.