O Tribunal Marítimo e o Novo CPC

O Tribunal Marítimo, conforme site da Marinha do Brasil, é definido como “órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Comando da Marinha” com jurisdição em todo o território nacional e com a atribuições, dentre outras, de “julgar os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre”. Trata-se, portanto, de um órgão administrativo, vinculado ao Poder Executivo, que auxilia o Poder Judiciário.

 

O Tribunal Marítimo está localizado na cidade do Rio de Janeiro e é composto por sete Juízes, nomeados pelo Presidente da República. Os juízes são civis e militares, nos termos dos artigos 3º e 4º de seu Regimento Interno:

 

Art. 3º – O Presidente será indicado pelo Comandante da Marinha, dentre os Oficiais-Generais do Corpo da Armada, da ativa ou inatividade, sendo de livre nomeação do Presidente da República, com mandato de dois anos, podendo ser reconduzido, respeitado porém, o limite de idade estabelecido para a permanência no serviço público.

 

Art. 4º – Os Juízes Civis e Militares nomeados serão: a) um bacharel em Direito, especializado em Direito Marítimo; b) um bacharel em Direito, especializado em Direito Internacional Público; c) um especializado em Armação de Navios e Navegação Comercial; d) um Capitão-de-Longo-Curso da Marinha Mercante Brasileira; e) um Capitão-de-Mar-e-Guerra ou Capitão-de-Fragata da ativa ou inatividade, do Corpo da Armada; e f) um Capitão-de-Mar-e-Guerra ou Capitão-de-Fragata da ativa ou na inatividade, do Corpo de Engenheiros e Técnicos Navais, subespecializado em Máquinas ou Casco.

 

Destaca-se que o Poder Judiciário não está obrigado a cumprir ou concordar com a decisão do Tribunal Marítimo. Neste sentido, o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:

 

“As conclusões estabelecidas pelo Tribunal Marítimo são suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário, ainda que a decisão proferida pelo órgão administrativo, no que se refere à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tenha valor probatório. (…) As decisões do Tribunal Marítimo possuem eficácia apenas no âmbito administrativo, razão pela qual suas conclusões podem ser revistas pelo Judiciário. Por conseguinte, ainda que as conclusões técnicas do Tribunal Marítimo devam ser valoradas da mesma forma que a prova judicial, o julgamento realizado no âmbito administrativo não condiciona a análise à lesão de direito realizada no âmbito do Judiciário. (Recurso Especial nº 811769/RJ, 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator Ministro Luis Felipe Salomão)

 

O Novo Código de Processo Civil pretendeu conferir força executiva ao acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo quando do julgamento de acidentes e fatos da navegação. Ou seja, o acórdão proferido teria natureza de título executivo judicial.

 

Contudo, tal disposição foi vetada pela Presidência da República, com base no seguinte argumento: “Ao atribuir natureza de título executivo judicial às decisões do Tribunal Marítimo, o controle de suas decisões poderia ser afastado do Poder Judiciário, possibilitando a interpretação de que tal colegiado administrativo passaria a dispor de natureza judicial”.

 

O presente texto busca analisar a inovação do Código de Processo Civil, que não sofreu qualquer veto, contida no inciso VII do artigo 313:

 

“Art. 313.  Suspende-se o processo:

(…)

VII – quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo;”

 

Trata-se, certamente, da maior novidade do Novo Código de Processo Civil em relação ao Direito Marítimo, pois restou estabelecido que, enquanto o mérito de uma questão decorrente de acidente se fatos da navegação estiver pendente de julgamento no Tribunal Marítimo, o processo judicial deve ser suspenso.

 

Por exemplo, se uma parte ingressa com Ação de Indenização por Danos Materiais e Morais com fundamento em acidente ocorrido entre duas embarcações, o Novo Código de Processo Civil determina que, caso exista um processo no Tribunal Marítimo apurando tal fato, aguarde-se a conclusão desse órgão para que o resultado seja utilizado pelo Poder Judiciário na solução da lide.

 

Sobre o tema, importante destacar as palavras de CASSIO SCARPINELLA BUENO (Manual de Direito Processual Civil, volume único, 2ª ed, Saraiva, 2016):

 

“A literalidade do dispositivo pode ensejar a interpretação de que a suspensão do processo dá-se pelo simples fato de o Tribunal Marítimo ser competente para discutir a questão sobre acidente (art. 14 da Lei n. 2.180/1954) e fatos da navegação (art. 15 da Lei n. 2.180/1954). Isto, contudo, não parece ser suficiente para a suspensão.

 

Assim, é preferível interpretá-lo no sentido de que a suspensão do processo (civil) pressupõe que haja, naquele Tribunal, processo relativo ao mesmo acidente e aos mesmos fatos da navegação que animaram o processo judicial. Neste caso, de efetivo exercício da competência do Tribunal Marítimo, o processo judicial, deve ficar suspenso.

 

A razão da suspensão é mais que justificável. É que, de acordo com o art. 18 da Lei n. 2.180/1954, as decisões proferidas por aquele Tribunal ‘quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas’. Embora ‘suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário’ (…) a suspensão do processo quer aproveitar aqueles elementos e a expertise do Tribunal a respeito da apuração dos fatos e de seu entendimento acerca da responsabilidade eventualmente devida (art. 74 da Lei n. 2.180/1954).”

 

O aludido dispositivo já tem reflexos na prática forense, conforme se percebe da decisão proferida em 01/12/2017, nos autos da Ação de Indenização por Danos Materiais e Morais (processo nº 4010248-66.2013.8.26.0562) em trâmite na 1ª Vara Cível de Santos / SP, que determinou a suspensão do processo até a decisão do Tribunal Marítimo.

 

A aludida Ação de Indenização foi proposta em face da PETROBRÁS, QUIP S/A, LONDON OFFSHORE CONSULTANTS BRASIL LTDA e NOBLE DENTON & ASSOCIATES SERVIÇOS MARITIMOS LTDA., em virtude de acidente fatal relacionado ao lançamento da UFP – Unidade Flutuante de Produção semissubmersível, denominada P-55, a partir do Estaleiro Rio Grande, no Rio Grande do Sul.

 

No âmbito do Tribunal Marítimo, foi aberto o processo nº 28.518/2013, e o juiz determinou a suspensão do processo até o julgamento pelo tribunal administrativo.

 

Importante destacar, ainda, a existência de relevante doutrina que entende pela inconstitucionalidade do referido dispositivo, conforme o entendimento de BRENO GARBOIS e ANA CLARA MENDONÇA DO NASCIMENTO:

 

“Neste sentido, não nos parece respeitar a inafastabilidade de apreciação do Poder Judiciário prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal a determinação de suspensão do processo estabelecida no art. 313, VII, do Código de Processo Civil, já que ele, por via transversa, praticamente impede que qualquer pessoa ou parte interessada recorra ao Poder Judiciário visando à garantia de um direito violado, uma vez que a demanda em questão ficaria, de forma indefinida, suspensa e aguardando o julgamento de um processo administrativo cuja decisão, como visto, não possui efeito vinculante, uma vez que as decisões proferidas pelo Tribunal Marítimo possuem presunção relativa de certeza.

 

A inconstitucionalidade baseia-se no perigo da busca de prova a todo e qualquer custo, sem viabilizar a garantia de princípios constitucionais. Portanto, ainda que relevante a decisão proferida pelo Tribunal Marítimo sobre fatos e acidentes da navegação, a suspensão do processo judicial para este fim acarreta na evidente afastabilidade do controle jurisdicional, o que é vedado pela Constituição.” (GARBOIS, B., MENDONÇA DO NASCIMENTO, ANA CLARA, Breves Considerações sobre a Inconstitucionalidade do Artigo 313, VII, do Novo Código de Processo Civil – Suspensão do Processo Judicial em Razão de Processo Administrativo de Competência do Tribunal Marítimo in Revista de Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário, ano VI, nº 35, nov-dez 2016)

 

Dessa forma, será preciso analisar, na prática, se o referido dispositivo será salutar ou não para a solução de mérito em tempo razoável, conforme preconiza a Constituição Federal.

 

É evidente que o aludido dispositivo, por um lado, melhora a qualidade da decisão judicial, já que o juiz decidirá com mais informações e com as conclusões de um tribunal administrativo especializado.

 

Por outro lado, o aludido dispositivo prejudica a almejada celeridade processual, já que determina a suspensão do processo judicial até a conclusão do processo administrativo.

 

Por fim, surge uma relevante questão: a suspensão deve durar até que o Tribunal Marítimo decida a questão? Por um lado, não existe qualquer regra expressa em sentido contrário, o que encaminha uma resposta positiva. Por outro lado, em situações similares e externas ao processo judicial (§4º do artigo 313 do CPC), o prazo máximo de suspensão é de um ano, findo o qual, o processo civil retoma o seu curso.

 

Tal questão, pela relevância, será abordada em outro texto.

 

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