Preço da Internet e o paradigma do pão francês.

A Era Pré-Internet

 

Eu sempre gosto de iniciar um texto fazendo uma pequena incursão histórica sobre o tema, quem me acompanha, com certeza, já se deu conta disso. Pensando em preço, e mesmo no custo para o usuário de serviço de internet, não poderia ser diferente, e a incursão nos levará a uma viagem breve, mas bem interessante.

Nas “terras brasilis”, não antes da chegada dos navegadores europeus, mas da internet, já havia uma comunidade pré www (world wide web) que se utilizava de meios eletrônicos para se comunicar, trocar arquivos e até mesmo ter acesso a softwares por meio de BBS (Bulletin Board Systems). Não por outro motivo, foram eles que, no instante zero, passaram a oferecer navegação pela web como mais um serviço: providos de um link (normalmente de 64 Kbps) compartilhavam o acesso com seus milhares de assinantes.

Os assinantes de BBS, além de pagar uma mensalidade de associação, realizavam o acesso via linha telefônica discada. Não excepcionalmente, o gasto mensal com o “consumo” de telefone pelo usuário era maior do que assinatura com o BBS. A então concessionária de telefonia agradecia!

 

Nasce a Internet

No primeiro momento, com o surgimento dos provedores de acesso à internet, todos os acessos eram feitos no mesmo molde no qual, além do provedor, o usuário necessitava de uma linha telefônica e gastava valores significativos com o “consumo” de telefonia. Nesse momento, o relevante era ter ou não o acesso. Alguns se preocupavam com a banda que, na prática, não era “negociável” ou tinha um preço, e era limitada pela tecnologia (modem) e pela qualidade da infraestrutura disponível perto dos usuários e provedores (não por outros motivos, provedores nasceram em endereços ao lado de centrais telefônicas ou mesmo dentro da mesma facilidade).

O próximo passo foi o surgimento do acesso erroneamente denominado de “banda larga”. Digo erroneamente pois, em termos técnicos, banda larga deve ser um acesso de 2 Mbps ou mais e o que era oferecido como banda larga era qualquer coisa acima do limite da tecnologia do modem (limitado em 56 Kbps). Inicialmente as próprias concessionárias de telefonia, e posteriormente as operadoras de TV a cabo, passaram a oferecer esse serviço. Visando preservar o modelo de negócio definido pela ANATEL, além de contratar essa banda, havia a necessidade de se contratar um provedor de acesso. Vejam que a medida visava proteger um mercado nascente dos provedores e não uma visão do usuário sobre a questão. O tráfego gerado pelo assinante do serviço normalmente não passava pela infraestrutura do provedor, mas tão somente necessitava ser autenticado em uma conta do provedor.

A transição entre esses dois passos foi lenta (pode-se dizer que nos rincões do Brasil ela ainda acontece). Os provedores de acesso passaram a ter receitas por vezes maiores com o tráfego gerado por seus usuários na rede de telefonia do que com a assinatura dos internautas, dando origem aos famosos provedores de acesso gratuito! Mas gosto muito de frisar: não existe almoço grátis! O provedor de acesso estava sendo remunerado pelo tráfego gerado pelo usuário na rede de telefonia. Simples assim.

 

Acesso à Internet, um Negócio em Si.

Muitas concessionárias acordaram e criaram uma empresa do grupo econômico para ser provedora de acesso à internet, não por outro motivo, mas para garantir o tráfego dos internautas em suas redes telefônicas*. Ao passar de anos/décadas, a banda larga foi se consolidando e terminando o ciclo de internet associado ao negócio subjacente de tráfego na rede telefônica.

 

Banda Larga significa Foco nas Aplicações

O próprio nome da tecnologia – banda larga – acabou por definir o parâmetro/régua utilizada para a definição de preço da internet, ou seja, a internet passou a ser vendida por banda. Nesse momento, olhando para o usuário, vemos que as aplicações preponderantes são ainda aquelas do início da internet: navegação e correio eletrônico. Os jogos on-line começam a surgir e, especialmente entre os jovens, dirigem o apetite dos internautas para a contratação de bandas cada vez maiores.

Nesse momento, com o estabelecimento de um novo paradigma, as discussões passaram a ser sobre como a operadora deve entregar a banda contratada, o que acaba por ser definido como sendo de, no mínimo, 10%, ou seja, quando se contrata um acesso de 10 Mbps, a provedora não pode entregar menos do que 1 Mbps de banda ao internauta. Isso é muito relevante, pois evidentemente que, pensando em desenho e engenharia de redes necessárias para prestar o serviço, nunca se dimensiona uma rede para que trabalhe com 100% de “ocupação” e, mais importante, quanto maior o limite mínimo a ser garantido, mais investimento é necessário e, portanto, maior será o preço dos serviços prestados.

 

Acesso à internet vai Além da Banda

De fato, hoje a banda perde a sua relevância a partir do ponto que as prestadoras conseguem entregar o acesso ao internauta em uma banda que fica acima dos gargalos do acesso ao serviço desejado. Dito de outra forma, o gargalo da obtenção do serviço do usuário começa a se deslocar do acesso para o backbone da internet, ou seja, os servidores do provedor de serviços e mesmo a rede interna wifi, ou a “velocidade” do equipamento que ele está utilizando para ter acesso ao serviço desejado.

Um exemplo claro disso é o acesso a serviços de streaming de vídeo, música e TVs ao vivo pela internet. O internauta não está com a mínima preocupação se a banda de sua internet é de 10, 30, 50 ou 100 Mbps, o que ele quer é assistir ao filme ou ouvir a música com qualidade, “sem travar”! Veja que assistir a um filme com qualidade mínima consome 0,3 GB/h, já o mesmo filme com qualidade HD consome 2,3 GB/h.

 

O Modelo de Precificação da Internet fica Comprometido?

Nesse momento aquela régua utilizada para precificar a internet, a banda, perde sentido e, por outro lado, o consumo (volume de dados) utilizado pelos internautas passa a aumentar expressivamente. Está estabelecida a distensão: as operadoras necessitam de mais e melhor infraestrutura para prestar os serviços e os usuários entendem que o volume não estava na métrica de cobrança e, portanto, eles têm o direito de consumir a quantidade de dados que lhes convier!

Por certo os internautas, enquanto consumidores, têm todo o direito de entender que seus contratos sejam mantidos nas condições em que se iniciou a prestação dos serviços. Estabelecer limites de consumo e/ou interromper o funcionamento por atingir determinado limite seria inovar na relação estabelecida. Clamam ainda que em outros países, em sentido oposto, a internet é oferecida gratuitamente ao acessar este ou aquele serviço e que nosso país está atrasado!

Com toda a razão, as prestadoras de serviço de acesso à internet alegam que a mudança no perfil dos internautas está consumindo mais (volume) e demanda investimentos na infraestrutura que permitam financiar o crescimento e as melhorias necessárias na rede; e apontam o Marco Civil da Internet como empecilho para gerar parcerias que possibilitariam o compartilhamento dos custos de investimento nessa estrutura, pois a neutralidade não lhes permite priorizar este ou aquele provedor de serviços da internet em detrimento de outros.

 

A Solução com a Adequação para Nova Régua

Uma primeira abordagem para solução da questão é mudar de paradigma e criar uma nova régua para o serviço de acesso à internet, mas estabelecendo paridade entre a nova e a antiga régua para garantir que nem os consumidores, e nem as operadoras, sejam submetidos à surpresa de regras inovadoras e desestabilizadoras da relação de consumo.

Abro, nesse momento, um parêntesis para lembrar o paradigma do pão francês, que entendo fazer parte da solução desse dilema. Até quase 10 anos atrás, outubro de 2006, o pão francês era vendido por unidade, que deveria pesar 50 g, ou seja, 20 pãezinhos deveriam pesar 1 kg. Lembro-me das décadas de discussões e denúncias de pães pesando menos. Padeiros adicionavam produtos químicos para fazer o pão crescer mais e parecer ter 50 g, apesar do peso de fato ser menor. Um eterno cabo de guerra estabeleceu-se entre padeiros e consumidores, com órgãos de fiscalização e imprensa no meio. Até que a régua foi alterada, o pão francês passou a ser vendido por peso e não mais por unidade, contudo 20 pãezinhos continuariam a pesar honesto 1 kg. Hoje o que vejo regularmente é quase o problema inverso: eu peço por unidade, mas invariavelmente eles pesam, em média, 55 ou 60 g cada!

Assim, como se vendia pão por unidade, o peso era outra grandeza associada ao produto e se estabelecia uma relação direta entre a unidade e o seu peso. O mesmo pode se dizer da internet que, vendida por banda com garantia mínima, também tem uma relação subjacente com o volume de dados trafegados.

Ponto de VistaA banda pode ser entendida como a “largura tubo de dados” que estabelece a vazão de dados que podem fluir e, portanto, determina o volume de dados que pode ser transportado por esse “tubo”.  A partir dessa relação, garante-se que as condições do contrato de prestação de serviços sejam preservadas (cláusula rebus sic stantibus), alterando a medida de banda por volume de dados e estabelecendo uma nova régua compatível com o originalmente pactuado entre as partes.

Assim o “ovo de colombo” apresenta-se quando consideramos que uma determinada banda, posta à disposição do consumidor por um período certo de tempo (o mês) e com uma garantia mínima (10%), implica determinado volume de dados, estabelecendo-se uma relação direta e proporcional entre este e aquele. O número mágico é 32,4 GB de volume de dados para cada 1 Mbps de banda antes ofertada. Veja que com um simples link de 1 Mpbs é possível assistir ao equivalente a 10 horas de filme em qualidade HD sem “sobrecarregar” a rede da operadora.

Por meio dessa mudança de régua, podemos manter os mesmos pressupostos de engenharia no dimensionamento das redes por parte das operadoras e assegurar que os consumidores continuem a proporcionalmente usufruir da internet contratada pelo preço atual, alterando-se apenas o modo de aferir o uso.

 

Soluções Pensadas para a Realidade Brasileira

Outra queixa comum dos consumidores é a questão da internet “de graça” ofertada em outros países que, de fato, é paga por provedores de serviços na internet (como portais e streaming de vídeo) e também a reclamação das operadoras quanto ao Marco Civil da Internet, que impõe, em seu art 9º, os mecanismos da neutralidade, importantíssimo para a “democratização” da internet e garantia de um terreno neutro de competitividade de provedores de serviço. Novamente temos que ser inovadores e criativos. Simplesmente querer copiar um modelo estrangeiro e culpar nossa boa legislação por isso é muita falta de imaginação.

Aqui, outra visão que entendo ser complementar, e não excludente do raciocínio anterior, que quase peca pela sua simplicidade original: pague pelo tráfego de dados aquele que o gerar! Ou seja, contrato um serviço de vídeo sob demanda que cobra uma assinatura para eu assistir quantos filmes e seriados quiser, fico 24X7 assistindo tudo quanto é oferecido com qualidade HD pelo meu acesso à internet e é a minha “franquia” de dados que é consumida? Uma vez que se mudou a régua, ela hoje não distingue de onde para onde o tráfego vai. Vamos separá-la! Quem está injetando/gerando o tráfego na rede que pague por ele.

Muitos podem alegar: “Ah, isso vai encarecer minha assinatura de vídeo por demanda”. Será? Lembre-se que, ao negociar o volume de dados (tráfego), esse provedor de serviços, o NetFlix por exemplo, vai negociar volumes gigantescos e terá várias operadoras competindo pelo tráfego dele, o que garantirá preços justos e adequados.

Considerando que, mesmo assim, a sua conta fique maior, esse aumento será na justa proporção do real crescimento do seu consumo da rede e não de qualquer número aleatório que vise simplesmente o aumento de lucro da operadora.

A questão do pagamento do tráfego por quem o gere entendo ser boa e factível, apesar de necessitar de alguns equacionamentos para sua implementação em pontos como o pagamento entre as operadoras nos pontos de troca de tráfego entre elas (NAPs) e, mais especificamente, o tráfego gerado internacionalmente com destino ao Brasil. O serviço de streaming é outra questão a ser detalhada.

 

Nova Realidade sem Trauma ou Dor

Apesar da grande mudança do perfil de usuários em relação a como eles fazem uso da internet, entendo que uma abordagem simples e justa da questão pode viabilizar um preço adequado para os serviços de acesso, assim como garantir o equilíbrio econômico na relação com as operadoras que necessitam e devem fazer investimentos para uma internet forte e democrática.

 

*Foi o grande momento para o pequeno provedor de internet, que acabou tendo seu negócio comprado a peso de ouro por esses grandes provedores associados às empresas de telefonia.

2 comentários - Deixe um comentário
  • paulo breim -

    A matéria é interessante, no entanto faltou o principal que é a razãopela qual as operadoras não podem limitar o uso dos dados e nem vender plano baseado nelas.

    Tenho visto diversas matérias sobre a questão de limitação de dados na internet, mas em nenhuma vi a justificativa real do porque isso é um absurdo, e aqui vai a explicação.

    A internet funciona sob uma tecnologia que já tem quase meio século e do ponto de vista técnico, muitos serviços são muito ultrapassados, como por exemplo o e-mail.

    Você que está lendo esse texto, vai pagar pelo uso de dados, no mínimo 3 vezes mais o tamanho dessa mensagem. Uma simples palavra em negrito consumirá mais dados do seu pacote devido aos caracteres de controle que fazem a palavra aparecer em negrito. Uma mensagem de whatsapp com um simples: Oi, tudo bem? Vai consumir mais de 100 bytes do seu pacote.

    Se você enviar uma foto, ou video usando email, vai gastar o dobro de bytes do tamanho do video, sem contar todo controle do protocolo de e-mail propriamente dito, que por incrivel que pareça ainda utiliza tecnologia de 7 bits.

    Em qualquer serviço de internet o controle necessário de envio e recepção de informaçães é enorme e o usuário não tem a mínima idéia de quem está pagando isso e ele, e por isso fica extremamente surpreso com a velocidade que seu pacote de dados termina.

    Um pacote de 50MB vendidos a um preço altíssimo pelas operadoras, dura menos de 1 hora se o usuário tirar uma foto e enviar para os amigos.

    Como todo esse tráfego e necessário para o funcionamento da internet, o usuário não pode ser penalizado por isso, até porque não há como ele controlar esse desperdício e ele também não é informado desse consumo e nem quanto isso representa do chamado dado útil.

    Dado útil é o dado que o usuário digitou. Se ele digita um Oi, deveria ser cobrado por 2 bytes e não 100 que é o que o sistema gasta para enviar esse Oi.

    Se ele envia uma foto, deve ser cobrado pelo exato tamanho da foto, e não o triplo que o sistema gasta para enviar.

    Porém pela impossibilidade técnica da separação de dados úteis dos dados “sujos”, não é possível que se limite o uso da internet baseada em dados.

    Creio que na prática, a área comercial/produtos das operadoras, imagina formas de aumentar a receita, sem ter a informação técnica de como o sistema funciona, razão pela qual criam produtos que deveriam ser bloqueados pela Anatel.

    Eu mesmo já escrevi diversos emails para a ANATEL, falando desse assunto, mas jamais obtive qualquer resposta, começo a achar que ela mesmo não percebeu o problema.

    • Paulo Purkyt -

      Olá Paulo,

      Agradeço seus comentários. O texto realmente não abordou esses pontos. O objetivo não era questionar efetivamente a formação de preço feita pelas Operadoras o que pode levar a discussões sem fim. Pelo contrário, quis apresentar uma visão prospectiva que permita ter uma precificação compatível com o atual modelo mas baseada em volume e, ainda, “inocentando” o Marco Civil como sendo o bode expiatório dos custos de nossa internet. Acredito que até por uma questão legal/constitucional a ANATEL não se pronuncia sobre a formação de preço dos serviços devendo garantir a concorrência/competitividade e qualidade dos serviços ofertados. Fico a disposição.

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